Delicadamente passa a mão fechada
pela navalha de duas lâminas, sentindo um suave arrepio pelo corpo sentindo.
Sobre a palma da mão dois cortes simétricos que se misturam em uma única mancha
de sangue. Um a representar as próprias vísceras, a própria carne; outro a
representar uma agressividade contra o mundo ao redor, contida, a se voltar,
impiedosa, insustentável, remoendo o corpo da mão cortada. Uma única mancha de
sangue.
Nasceu assim como todo mundo. Um
pequeno conjunto biológico com fome e com sensações fisiológicas completamente
desorganizadas. Ao mamar, além do leite, foi familiarizando-se com o humano, à
revelia, ocupando um lugar predestinado de pessoa pobre e submissa ao poder do
outro forte. Como todo mundo, as sensações fisiológicas foram se organizando
contra a vontade, em um primeiro trauma, em um primeiro conflito,
costumeiramente denominado de desenvolvimento sexual normal. Um pequeno impasse
acompanhou já desde a infância. O que é ser normal? Indignação e revolta, não
mais como todo mundo, no largar o prazer do corpo todo e submeter-se entre a
mãe submissa e o pai violento. Uma luta interna marcada pela violência de não
resignar-se, intolerante à submissão, intolerante à agressividade. E a
intolerância encontrou-se com o ódio. E o ódio ficou no avesso do que foi,
reprimido e latente.
“Não me ouve quem me diz ‘pense positivo’, pois não vive a vida dentro
de mim.”
No resto, sobrou a pergunta eterna
de uma existência inteira. Por que a primazia do gênero e do genital se o corpo
inteiro é prazer sensível? Por que não poder ser menino e menina? Uma única
mancha de sangue no corte simétrico na palma da mão. Por que do preconceito
percebido desde cedo demais? O mundo impõe-se e a reação não tarda. No
amadurecer opta por lutar, fazer prevalecer-se.
E assim foi crescendo, entre socos
e pontapés, em um corpo polimorfo, erotizado, com ojeriza de gente. Na
incompreensão de si, na luta imersa no conflito, o compromisso foi um delírio
persecutório, um quadro de horror e surrealidade, de repulsa e atração
simultânea ao sexual.
“Não me ouve quem me diz ‘seja feliz’, pois não vive a vida dentro de
mim.”
Naquela sala estranha, não de
repente, o estranho foi tomando forma de discurso. Uma fala tímida e agressiva
aos dois da sala foi esboçando-se em história a ser contada. Enfim, era
possível começar as respostas de certas perguntas. Duas manchas de sangue a
formar uma única aquarela. Colorida. Todas as cores são coloridas. Não só rosa.
Não só azul. Não só cinza. E a paleta trouxe a tela, e a tela a compreensão de
si/mundo de si/mundo para si. E a dor não passou...
“Sabe... Quando eu acreditava que o terror se encontrava dentro de minha
cabeça era mais fácil... mais fácil. Saber que está no mundo, é desconfortável...
Antes era mais fácil.”
E vai vivendo a vida do jeito que
dá. Às vezes, ao olhar a palma da mão, duas pequenas cicatrizes simétricas
surgem onde não há mais sangue. Made in
Mundo Humano.
MARCOS
INHAUSER SORIANO é psicanalista.
Email: misoriano@terra.com.br
Nenhum comentário:
Postar um comentário